quinta-feira, 30 de abril de 2015

Autofagia

Ele sorrindo, me contou da vida
Lambendo a mim, como as suas feridas
Como se fosse eu o tempo, a mim dava satisfação,
enqto dele eu tomava
a conta
Fez altar no lugar de canção

Diário de bordeaux

Um ciclo que se fecha, um momento de transição, leve rejeição. O não mais querer, que não o seu, mesmo que eu não o desejasse. A espera pela fantasia, o anseio amputado. Culminando numa dor, dor de solidão. Solidão desconhecida e ignorada por longos sete anos. Aos 30, 7 anos é tempo para muitos feitos e desfeitos.
Uma mulher nada convencional (e qual seria?), a mistura de algumas. Aquelas que não se vêm, que se sentem. Sentem muito.
Negra por insistência, macumbeira por delegação e inteligente por orgulho. Tudo se resumia em uma simples questão de bom gosto e sofisticação. Àquela que só o que parece contraditório, soa interessante.
Forte, conscientemente forte, sem se permitir a dor que insistia em humanizá-la. Se envaidece e teme sua dissimulação de fortaleza. Sua ousadia no pensar, sua diferença em contrariar a si e a todos que piscam antes de verbalizar.
A facilidade com que associa palavras, entonações e gestos, tornava consistentes seus achismos, quase indubitáveis. Provocava reações, jamais indiferença a sua presença. Divertia-se com suas incongruências, pois elas a faziam rainha de si.
Recém nascida em sua religiosidade, sua válvula motriz. Recorreu aos seus mais secretos poderes buscando abrigo.
Em uma dessas noites mágicas, foi até seu mais íntimo amigo, a ele apelou por conforto.
Envolveu-se num ritual tão feminino quanto eficiente, saída desse momento de especial conexão com o invisível, sentiu-se melhor...
Veio antes do término do ritual a necessidade de trocar, com alguém mais humano. Outra vez conectou-se, mas agora a artifício menos sacro.
Com a esperança de se tornar una, de recolher o que havia tão generosamente espalhado, permitiu-se olhar com menos resistência para a possibilidade de mudança, mudança de si. Ainda digerindo essa idéia, dá atenção a um “Olá”, que rompe o vazio da tela do seu computador, como que também rompesse seu silêncio, obrigando-a a se relacionar com o outro, sabe-se lá quem... E em questão de minutos, coincidências, afinidades e desejos. Em algumas horas a vontade de paixão, mais algumas e a paixão platônica. Assim findaram-se toda sua agonia e seu desejo de ser outra, todas suas dores pregressas já não podiam ser vistas a olho nu. Desespero de causa ou de fato um presente?
Quem? Luciano, não menos doído, não menos engraçado, não menos negro, não menos macumbeiro, não menos amante dos ritmos e sensações. Dúvidas, muitas brotaram na sua cabeça como que plantas que não aguardam o cultivo, como almas ansiosas por seu corpo. E o medo de encontrá-lo e decepcionar-se consigo? O medo de ter que retomar a idéia repulsiva de mudança... Dias depois, o encontro.
Espera ansiosa a chegada do que ainda não tinha face, mas que já estava tão próximo do seu desejo. Um bar, a mesa do lado de fora, olhares para todos como que se alguém pudesse mudar o rumo do que mais ansiava naquele momento.
Por muitas vezes enquanto aguardava tentou se tornar mais bonita, postura, caras e bocas, batons, olhares, gestos, até o que bebia ao aguardá-lo, fazia parte do ritual, seria seu afrodisíaco.